Sinopse Carta depois do fim
Sinopse Carta depois do fim
Daniel perde sua esposa Helena para uma doença rara e degenerativa, mergulhando em dor e solidão. Meses depois, ele começa a receber cartas dela todos os meses, mensagens que desafiam a lógica e trazem consolo, esperança e mistério. Entre amor, perda e lembranças, Daniel precisa aprender a viver enquanto mantém vivo o vínculo impossível com quem ele mais ama.
Em algum lugar na cidade de São Paulo, os sinos tocavam. Em uma pequena igreja, com várias pessoas reunidas, um evento estava prestes a acontecer. Daniel Alves estava no altar, esperando aquela que viria a ser sua esposa, Helena Dias.
— Será que fiquei bem nessa roupa?
— questionou Daniel, enquanto ajeitava o paletó.
— Ficou sim, Dani, mas se prepara, a qualquer momento ela vai chegar! — respondeu Enzo Dias, irmão mais novo de Helena.
— Verdade, logo, logo ela irá aparecer...
Ao virar o rosto para a entrada da igreja, ele a vê: Helena Dias, com um belo vestido de noiva e uma beleza estonteante. Seus cabelos avermelhados eram inigualáveis. A garota caminhava até o altar, e Daniel, ao vê-la, lembrou-se do dia em que a conheceu.
Alguns anos antes...
O jovem Daniel estava a caminho da escola, dentro de um ônibus lotado. Segurando-se para não cair, ele andava pelo corredor enquanto pensava:
— Por que os ônibus dessa cidade têm que ser tão lotados?! De repente, o veículo freou bruscamente.
Daniel quase caiu no chão, mas conseguiu se segurar. Ao recuperar o equilíbrio, percebeu que alguém descia no ponto em que o ônibus havia parado. Cabelos longos e avermelhados, uma beleza de tirar o fôlego. Daniel reconheceu: era Helena Dias, a garota mais bonita da sua escola. Por um segundo, os dois trocaram olhares. A jovem sorriu e acenou para ele, que, surpreso, pensou:
— Isso foi pra mim? Eu só posso estar sonhando! Subitamente, seu devaneio foi interrompido ao perceber que o ônibus já passava pela frente da escola. Ele havia perdido o ponto.
Algumas horas depois...
— Finalmente, chegou a hora que eu aguardava! Hora do clube escolar! Pena que ninguém gosta de arte... mas o que será que vou pintar hoje? Daniel ficou pensando por um momento. Nada de especial lhe vinha à mente, exceto aqueles longos cabelos avermelhados. Mesmo sabendo que desenhar pessoas sem consentimento era errado, pensou que ninguém descobriria, já que ninguém além dele entrava naquela sala.
— Então tá decidido!
Ele pintou por horas, usando apenas a lembrança do sorriso da garota. Quando pintava, nada mais parecia importar: sua arte era seu mundo, sua válvula de escape. Depois de muito tempo, finalmente terminou mas uma surpresa aconteceu.
— Nem eu sabia que eu era tão bonita! — disse uma voz atrás dele.
Sem entender, Daniel se virou lentamente. Era Helena, observando-o junto ao quadro.
— Ah, ah... des-... desculpa te desenhar sem sua permissão! — gaguejou, vermelho de vergonha.
— Para com isso, seu bobo! Eu gostei muito! — respondeu ela, com um grande e belo sorriso.
De volta ao casamento...
— Você, Daniel Silva, promete amar e respeitar Helena com todas as suas forças?
— Prometo!
— Você, Helena Dias, promete apoiar e amar Daniel com todo o seu coração?
— Prometo!
— Eu, como sumo sacerdote desta igreja, os declaro marido e mulher! Pode beijar a noiva!
Naquele momento, todos os convidados aplaudiram. Os mais próximos se emocionaram e choraram de felicidade. Aquele seria o início de uma vida feliz para o casal. Alguns meses depois...
— Daniel, já disse que erros são inadmissíveis. Se você errar um número, a empresa pode falir por sua causa. Olha o tanto de pais de família que você iria deixar desempregados.
— Mas chefe, foi só um...
— Não tem "foi só um"! Espero que isso não se repita. Se acontecer de novo, pode dar adeus ao seu emprego!
— Tá bom, chefe...
Daniel saiu da sala e foi para sua mesa no escritório. Ao se sentar, suspirou profundamente. Ao lado dele, uma pessoa conhecida começou a conversar: sua colega de trabalho, Isabela.
— De novo aquele cara veio pegando no seu pé?
— Sim. Sempre que ele tem problemas em casa, desconta na gente. — Pessoinha nojenta! O que foi dessa vez?
— Faltou um número na planilha do Excel.
— Aquela sobre o inventário da empresa?
— Sim. Esqueci de adicionar que compramos cento e três papéis higiênicos, não cento e dois.
— Ele brigou por isso?
— Acredite se quiser, mas sim.
— Que saco! Mas me diz, Dani... quando a Helena vai voltar? Ela já se recuperou?
— Logo, logo ela volta.
— Ainda bem! Nunca vi ela ficar doente, então essa gripe pegou pesado.
— Sim. Se ela não estiver melhor quando eu chegar, vou levá-la ao médico.
— Ok. Se precisar de mim, você tem o meu número.
— Pode deixar, Isa.
Algumas horas depois...
— Finalmente deu meu horário. Até logo, Isa!
— Tchau, Dani. Até amanhã!
Daniel pegou suas coisas e foi até uma confeitaria buscar o bolo favorito de Helena.
Depois, voltou rapidamente para casa — um pequeno apartamento que os dois haviam comprado com muito esforço. Ao abrir a porta, encontrou Helena sentada na sala, tomando chá.
— Meu amor, como você está? — perguntou, apreensivo.
— Estou bem, querido. Como foi o trabalho?
— Ainda bem que melhorou. O trabalho foi um saco, como sempre.
— Aquele estúpido pegou no seu pé de novo?
— Sim. Tudo por causa de um número de papel higiênico na planilha... Ah, e a Isa mandou um oi.
— Aquele babaca... Quando eu voltar a trabalhar, ele vai ver o que é bom pra tosse! E que bom que a Isa mandou um oi. Espero que ela esteja se virando bem sem mim.
— Acho que sim.
— Agora vamos parar de falar de coisas chatas! Quero ver o que você trouxe pra mim.
— Sabia que não dava pra esconder de você... É um bolo de mousse de morango!
— Eba! Vamos comer!
Helena deixou o chá sobre a mesinha entre o sofá e a TV e se levantou para ir até o marido. Entretanto, para surpresa de ambos, perdeu as forças e caiu sentada no chão.
— Amor! Você está bem? — perguntou Daniel, correndo até ela.
— Acho que ainda não estou completamente curada...
— Eu falei que, se você não estivesse bem, iríamos ao hospital!
— Ah, mas hospital é tão chato... — disse, fazendo bico.
— Eu sei que é, mas precisamos saber o que está acontecendo.
— Tá bom, né...
Daniel ajudou Helena a se levantar e a colocou de volta no sofá. Rapidamente arrumou tudo o que precisariam para ficar no hospital e a conduziu até o carro.
— Helena, não se esqueça do cinto!
— Ah, mas eu tô no banco de trás!
— No banco de trás também tem que usar o cinto de segurança!
— Tá bom, capitão chato... — disse, fazendo careta.
Após colocar o cinto, partiram para o Hospital Nacional de São Paulo. Cerca de trinta minutos depois, chegaram. Daniel ajudou Helena a caminhar até a recepção, onde fizeram a ficha. Depois de algum tempo, ouviram no painel:
— Helena Dias Silva!
— Finalmente chegou sua vez.
— Por isso não gosto de hospitais... tudo demora demais!
— O pessoal aqui é bem ocupado. Me dá sua mão, vou te ajudar até o consultório.
— Obrigada, amor!
Daniel a acompanhou até a porta. Antes que ela entrasse, disse:
— É para contar todos os sintomas.
— Até essa super fraqueza?
— Primeiramente esse!
— Tá bom... Nos vemos em breve, amorzinho.
— Ficarei aqui te esperando. Helena entrou no consultório.
Daniel se sentou e esperou. O tempo passou e ela não saía, o rapaz ansioso batucava os dedos no braço da cadeira, tentando acompanhar o ponteiro do relógio. O som dos passos no corredor parecia mais alto, como se cada sapato pudesse ser o dela, se boca secava. E se tivesse acontecido algo lá dentro? No mesmo momento um Helena sai da sala e vai direto até onde seu marido esperva.
— Oi... O doutor ainda não sabe o que você tem?
— Ele tem algumas teorias, mas não tem certeza. Vou ter que fazer uma bateria de exames para confirmar.
— Ah, sem problemas, eu espero.
— Aqui vai demorar muito, amorzinho. Amanhã você tem que trabalhar. Vai para casa descansar, e depois que acabar eu chamo um carro por aplicativo.
— Certeza?
— Sim, pode ficar tranquilo. Logo vou ao seu encontro.
— Tá bom... Vou ficar te esperando.
Daniel deu um beijo de despedida e deixou o hospital. Eram cerca de dez da noite, então o trânsito estava tranquilo. Quinze minutos depois, chegou em casa. Cansado, deitou-se e apagou na cama.
Algumas horas depois...
— Zuuuuu...
— Já tá na hora de acordar?
— Zuuuuu...
— Será que dormir mais dez minutos vai me matar? Acho que não...
— Zuuuuu...
— Que barulho chato!
Pegou o celular e percebeu que não era o despertador: era uma ligação. Helena estava ligando às quatro da manhã. Ele atendeu rápido.
— Alô, amor, tudo bem?
— Amor... vem aqui! — disse ela, com a voz trêmula.
— Helena? O que aconteceu? Onde você está?
— Ainda estou no hospital. Vem aqui, por favor! — respondeu, chorosa.
— Estou indo! Mas o que aconteceu? — Quando você chegar, eu falo...
— Tá bom. Tô indo!
Daniel se arrumou às pressas, entrou no carro e foi o mais rápido possível. O trajeto que levaria quinze minutos, ele fez em sete. No hospital, foi direto à recepção.
— Boa noite. Sou o esposo da Helena Dias Silva!
— Ah... ela está na UTI, no segundo andar.
— Na UTI?! Como assim?!
— Senhor, depois de um tempo que o senhor saiu, ela foi transferida para lá. — Tá bom, obrigado! — disse, saindo apressado.
— Senhor! Precisa da carteirinha!
Ignorando, Daniel correu para o elevador, mas ele estava em um andar distante. Sem tempo, subiu pelas escadas até a UTI. Ao chegar, percebeu que não sabia o número do quarto.
— Droga... vou ter que perguntar.
Avistou um médico e correu até ele.
— Senhor! Senhor!
— Rapaz, o que está fazendo aqui? Aqui é área restrita!
— Estou procurando minha esposa! Helena Dias Silva!
— Você é o Daniel?
— Sou... — Chegou em boa hora. Sou o Dr. Iago Ramires, médico dela. Me acompanhe.
— Doutor, o que está acontecendo com a minha esposa?
A voz de Daniel saiu mais aguda do que ele queria. O nó em sua garganta apertava tanto que chegava a doer. Ele apertava os punhos, como se pudesse arrancar a resposta à força.
— Acho melhor explicarmos na presença dela...
Seguiram até o quarto. Ao abrir a porta, Daniel se deparou com Helena ligada a vários aparelhos.
— Amor!
— Dani...
Ele correu até ela e segurou sua mão. — Amor... o que aconteceu? Por que você está assim?
— Acho que estou um pouco mais doente do que imaginávamos.
— Um pouco?! O que você tem?
— Qual era o nome mesmo, doutor?
— perguntou ela, envergonhada.
— Noctis Mors. É uma doença degenerativa, antiga e rara...
— Mas tem cura? Por ser antiga, a ciência já deve ter descoberto, né?
— Infelizmente ainda não há cura. Mas, como está no início, as chances se um tratamento ser bem-sucedido aumentam.
— Ok, doutor. Obrigado.
— Por enquanto, fique com sua esposa. Ela precisa de você.
O médico saiu, deixando-os sozinhos.
— Amor, como você está se sentindo? — Fisicamente? Parece que um caminhão passou por cima de mim. Emocionalmente... ainda não caiu a ficha.
— Não se preocupe. Você ouviu o doutor: como está no início, as chances de melhorar são boas.
— Eu sei... mas estou com medo...
Algumas lágrimas escorreram dos olhos dela, e Daniel a abraçou. Algumas semanas depois... Com Helena no hospital, a rotina de Daniel mudou. Ele ia do trabalho para o hospital e vice-versa, raramente voltava para casa. Ela não mostrava sinais de melhora, mas ambos tentavam se manter confiantes.
— Amor, como você está se sentindo? — Acho que bem! — disse ela, sorrindo.
— Sério?
— Sim. Só estou um pouco gripada. Tenho tossido muito.
— Será que pode tomar o Movie-Gripe?
— Temos que pergunt... A fala dela foi interrompida por uma crise de tosse — desta vez, com sangue.
— Vou chamar o doutor!
Daniel correu até Iago, que veio com duas enfermeiras. Ao chegarem, Helena ainda tossia sangue. Rapidamente, sedaram-na e administram medicamentos e soro. Ela passou um dia inteiro assim.
Alguns dias depois...
— Daniel, tem um tempinho? — perguntou o doutor.
— Acho que sim...
Daniel se levantou, avisou Helena e seguiu com ele para o corredor.
— Preciso ser sincero: até agora ela não apresentou melhora.
— Nós dois já percebemos isso... — disse Daniel, cabisbaixo.
— Mas há um tratamento experimental, desenvolvido por um laboratório nos EUA. Quer tentar?
— Experimental? Como funciona?
— A doença endurece os tecidos, começando pelos órgãos internos, depois músculos, pele... O tratamento tenta direcionar a doença para atacar células mortas, dando tempo ao corpo de se recuperar.
— E quanto custa?
— Dez mil por mês.
— Dez mil?! Com meu salário... não consigo. É a melhor chance dela?
— Sinceramente, sim.
— Se eu fizer dois turnos, consigo... Onde assino?
O doutor trouxe o contrato, e Daniel assinou sem hesitar.
— Irei informar a diretoria.
Voltando ao quarto, ele disse a Helena:
— Amor, logo você vai começar um novo tratamento.
— Sério? Esses tratamentos costumam ser caros...
— Sim, mas vou dar um jeito. Ficarei menos tempo aqui, mas quando você melhorar, compensamos.
— Combinado.
Algumas semanas depois... O tratamento começou, e Daniel passou a trabalhar dobrado. Passava mais tempo dormindo em uma cadeira no hospital do que em casa. Helena entendia, mas sentia falta dele. Um dia, no trabalho, Isa perguntou:
— Dani, você está bem?
— Um pouco cansado, mas bem.
— Você está se forçando demais... já falei que posso te emprestar dinheiro. — Não precisa. Aguento mais um pouco. Mas, se precisar, eu aviso. Poucos minutos depois, o celular tocou.
— Dani, o celular! — disse Isa.
— Obrigado. Era o doutor Iago:
— Daniel, tá me ouvindo? Vem correndo pra cá! É a Helena...
Daniel se levantou de repente.
— Algo aconteceu com a Helena. Isa, avisa o chefe!
— Vai logo! Ele saiu disparado.
O trânsito estava pesado, mas, buzinando e forçando passagem, conseguiu chegar. No hospital, passou direto pela recepção e foi ao quarto de Helena. estava vazio, ao ir para o corredor ele se encontra com o doutor.
— Vem comigo! — disse Iago, ofegante.
Daniel correu atrás do doutor Iago, cada passo ecoando como um tiro no corredor branco. O ar parecia mais denso, difícil de respirar. A porta da emergência estava aberta, luzes frias piscando no teto. No centro da sala, Helena, magérrima, pálida, os fios ruivos espalhados no travesseiro como uma mancha viva sobre a brancura do lençol. Tubos, agulhas, máscaras. As mãos dela tremiam levemente enquanto tentavam alcançar o vazio.
— Helena! — A voz dele saiu rouca, quase um grito.
Ela ergueu a cabeça com um esforço sobre-humano, como se o simples ato custasse todo o resto de força que tinha. O olhar dela o encontrou
— ainda brilhante, mesmo no meio da dor.
— Daniel... ainda bem que chegou... — Um suspiro quebrado. — Eu... te amo... meu amor...
A última palavra se dissolveu no ar, junto com o calor do corpo dela. E então o som. Um único tom agudo, longo, cortando tudo: PIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII. O mundo parou. O doutor gritava ordens, enfermeiras se moviam rápido, mas Daniel só via os lábios dela pararam no meio de uma palavra que nunca viria. A mão escorregou da beira da maca e, quando bateu contra o lençol, fez um som seco, pequeno demais para a enormidade que caía sobre ele. Daniel tentou dar um passo, mas os pés não obedeciam; era como se o chão tivesse sumido sob seu corpo. Aquela nota aguda não estava mais no ar — estava dentro da cabeça dele, crescendo, engolindo tudo, até que não havia mais hospital, nem gente, nem cor. Só aquele som e o vazio onde ela estava
Algum tempo depois...
Daniel abriu os olhos devagar. Não estava em sua cama, mas sentado em um banco de madeira, no meio da pequena praça perto da escola antiga. O céu estava limpo, um azul tão profundo que parecia pintado. O vento carregava o perfume doce de flores recém-brotadas, e o som distante de crianças brincando preenchia o ar.
— Onde... onde eu tô? — murmurou, confuso.
— Dani, amor! — A voz familiar cortou o ar como música.
Ele se virou. Helena estava ali, num balanço. Vestia um vestido branco leve que dançava com a brisa, e o chapéu de palha em sua cabeça deixava escapar fios de cabelo enfeitados com flores coloridas. O sol batia sobre ela, transformando cada detalhe em algo etéreo. Daniel ficou parado, tentando respirar. O coração disparava, mas não de medo — de alegria. De alívio. Ele se aproximou.
— Helena... é você mesmo? Ela sorriu, aquele sorriso que sempre desmontava qualquer dúvida.
— Claro que sou eu, bobo. Está tudo bem agora.
O balanço rangia suavemente enquanto ela se embalava. Ele sentiu o cheiro das flores misturado ao perfume que Helena sempre usava. Tudo parecia real demais.
— Mas... eu não lembro como vim parar aqui.
— Você esqueceu? Estamos num encontro! — disse ela, rindo.
— Pra compensar o tempo perdido... todo aquele tempo em que você só trabalhava.
Daniel sorriu sem jeito, mas algo o incomodava. O riso das crianças havia cessado. O vento parou. O balanço continuava a se mover, mas as árvores em volta estavam imóveis, congeladas. Um arrepio subiu pela sua nuca.
— Espera... isso não pode ser... — murmurou.
Helena inclinou a cabeça, com ternura.
— Dani... hora de acordar.
O celular começou a vibrar dentro do silêncio parado, uma voz metálica ecoando no vazio: "Hora de acordar, logo avisa que é hora de acordar." Daniel desligou o celular com um tapa mal dado e ficou deitado por alguns segundos, encarando o teto encardido. O despertador ainda ecoava dentro da cabeça, mesmo em silêncio. A barba crescida coçava o rosto, áspera como palha. O corpo pesava, e cada músculo parecia se recusar a levantar. Forçou-se a sair da cama. O chão frio gruda nos pés descalços, úmido em alguns pontos — talvez restos de algo derramado dias atrás. No ar, um cheiro azedo de comida podre misturava-se ao amargor da poeira. As paredes, antes limpas e cheias de quadros, estavam manchadas de marcas de gordura e sujeira. Na cozinha, a pia transbordava de pratos. Um prato fundo com restos ressecados de molho cheira a vinagre. As moscas sobrevoavam, zumbido baixo, como se zombasse da preguiça dele. Daniel abriu o armário com força: estalos secos, cheiro de madeira mofada. Só encontrou, esquecido no fundo, um pacote amassado de macarrão instantâneo. Preparou sem paciência, despejando o pó alaranjado da embalagem na água fervente. O vapor queimou o rosto, mas ao invés de cheiro de tempero, sentiu apenas um aroma artificial, quase plástico. Sentou-se à mesa. De um lado, ele. Do outro, a foto de Helena. A moldura estava empoeirada, mas o sorriso dela ainda parecia iluminar a cozinha. Daniel mastigou devagar, sem sentir gosto, apenas encarando aqueles olhos congelados para sempre. enquanto ele almoçava ele escuta uma batida em sua porta:
— Daniel? Aqui é a Isa, vim vem se está tudo bem?
Daniel ao escutar a voz de sua amiga, apenas fica em silêncio.
— Eu sei que você não quer falar com ninguém, mas já faz quatro meses que você não sai daí, então se precisar conversar é só me ligar.
O silêncio prevalece.
— Vou indo então, deixei uma caixa com alguns legumes, pega e come um pouco...
Daniel conseguia escutar o som dos passos de Isa se afastando, de certa forma ele não queria comer nada, mas aquele tinha sido seu último pote de macarrão instantâneo, Ele esperou cerca de cinco minutos até que Isa já estivesse longe, assim voltando a dirigir a porta. No momento em que Daniel iria abrir a porta, a campainha voltou a tocar. Ele recuou, achando que Isa tinha retornado.
— Correios!
Do outro lado, a voz firme de um carteiro ecoou.
— Ah, é só uma carta... Mas de quem será?
— Não tem ninguém em casa? Vou deixar debaixo da porta então.
O som do papel deslizando pelo chão de madeira cortou o silêncio da sala. Daniel, curioso, pegou o envelope. No instante em que seus olhos caíram sobre o remetente, o mundo parou. Helena. A mão dele tremeu. O coração disparou como se fosse arrebentar o peito. Ele piscou várias vezes, tentando se convencer de que estava errado. Não podia ser. Helena estava morta. Helena estava... O envelope escorregou de seus dedos e caiu no chão, seco, fazendo um barulho pequeno demais para a tempestade que explodia dentro dele. Ele levou as mãos ao rosto, respirando rápido, a boca seca, como se tivesse acabado de correr quilômetros. Curvado, ajoelhou-se para pegar a carta, mas recuou. Parte dele queria rasgar o envelope, outra parte queria nunca mais tocá-lo. O impossível estava ali, a poucos centímetros de distância. E, pela primeira vez em quatro meses, Daniel sentiu medo.
Daniel, paralisado de medo, fica um tempo encarando a carta sem acreditar no que tinha lido. Como aquilo era possível? Já faziam quatro meses que ela havia partido. Será que poderia ser um conhecido dele tentando enganá-lo? Para verificar sua teoria, ele novamente lê o remetente da carta: Helena estava escrito com a letra da sua falecida esposa.
— Isso não é possível… — diz, enquanto olhava para a carta sem conseguir entender.
Mesmo com medo, ele resolve abrir a carta. Ao abrir, lê lentamente o que estava escrito.
Oi, meu amor.
Se você está lendo isso, significa que já faz um tempo que não nos vemos. Sei que está sofrendo, mas não quero que meu último presente para você seja tristeza. Prometa que vai se cuidar, mesmo que doa.
Quero que volte comigo ao lugar onde tudo começou: nossa antiga escola. Você lembra daquela sala de artes, onde entrei por engano e vi você pintando? Foi ali que percebi como o mundo podia ser bonito visto pelos seus olhos.
Leve uma flor para mim — lavanda, a minha preferida. Coloque sobre a cadeira onde me sentei naquele dia. Esse será o nosso reencontro.
Essa foi a primeira vez que te vi.
Hoje quero que você me veja de novo.
Com todo o meu amor, Helena.
— Helena? Mas como isso é possível?
Assustado, ele solta a carta novamente. Rapidamente, o rapaz começa a hiperventilar. Sem ar e com uma grande dor no coração, ele já não entendia o que aconteceu. Lembranças dos últimos momentos de Helena começam a ecoar em sua mente: as últimas palavras dela, o som dos aparelhos. Daniel cai no chão, chorando e tremendo.
Algumas horas depois…
Daniel estava sentado no canto da cozinha, observando a carta jogada no chão. Naquele momento, já estava um pouco mais calmo, mas mesmo assim não conseguia aceitar a realidade. Novamente, volta a pegar a carta e, ao lê-la, observa muito bem a letra. Ele não tinha dúvidas: era a letra da Helena.
— Foi ela que escreveu isso, mas quando? É por quê? O que ela quis dizer com essa carta?
Daniel fica um bom tempo pensando, até que finalmente se dá conta de algo: ele percebe que, mesmo depois da morte da esposa, ela ainda havia deixado uma última mensagem. Novamente, lágrimas começam a cair dos pequenos olhos do rapaz. Colocando a carta no peito, ele se deita no chão em posição fetal. Com o tempo, adormece.
No dia seguinte…
Daniel caminhava por um corredor de escola vazio. As portas das salas estavam abertas, mas dentro delas só havia cadeiras vazias. O som dos seus passos ecoava como se estivesse em uma catedral.
No fim do corredor, uma única sala iluminada. Lá dentro, Helena estava sentada na cadeira onde ele a havia desenhado pela primeira vez. Só que, no lugar do rosto dela, estava o quadro antigo que ele havia pintado anos atrás.
Ela se levantou lentamente, segurando uma lavanda na mão.
— Você lembra de mim assim, não é? — disse, com a voz suave, mas sem mover os lábios.
Quando estendeu a flor para ele, o corredor inteiro começou a se desfazer em pedaços, como tinta escorrendo de uma tela. A flor caiu no chão antes que ele pudesse alcançá-la.
Daniel acordava jogado no chão, segurando a carta, que já estava amassada. Assustado pelo pesadelo que tivera, ele se questionava se deveria cumprir o pedido. Mas logo um pensamento surgiu em sua mente.
— Você não vai cumprir o último pedido de sua esposa?
O rapaz se questionava o que deveria fazer. Por mais que tivesse vontade de realizar o último pedido de sua esposa, faltava força para sair de casa. Ele vai até a cozinha, vê a foto da esposa, pega e, olhando para ela, se pergunta:
— Helena, sem você eu não consigo…
Ele volta para frente da porta e fica andando de um lado para o outro, decidindo o que faria. Em surto de coragem, vai até a porta, mas ao tocar na maçaneta, hesita. Tentava girar a maçaneta, porém algo o impedia.
— Merda, o que está me impedindo? Daniel solta a maçaneta e resolve ir para o banheiro lavar o rosto, na esperança de ganhar coragem no processo. Já dentro do banheiro, joga água na face, mas ao olhar no espelho novamente percebe: não conseguia se ver. Desde a morte de Helena, não conseguia se ver em um espelho.
— Quer saber, é agora ou nunca. Um último esforço por ti, meu amor!
Daniel, com as duas mãos, estapeia suas bochechas e vai correndo em direção à porta. Ao tocar a maçaneta, hesita novamente, mas dessa vez gira. Ao abrir lentamente a porta, algo estranho acontece: o mundo havia perdido as cores, tudo estava em tons de preto e branco.
— O quê está acontecendo? — Questiona, coçando os olhos.
Algo estava errado. Ainda era de dia, então não havia razão para tudo estar escuro. Ao olhar para baixo, ele se depara com uma caixa, provavelmente a que Isa tinha deixado na porta no dia anterior. A caixa também não tinha cores.
— Merda, algo está muito errado comigo.
Daniel pega a caixa e a leva para dentro de casa, mas novamente sai para realizar o último desejo da esposa. Andando pelo bairro, percebe que várias pessoas o observavam, mas não entendia o motivo. O rapaz não sabia onde ficava uma floricultura, então tentava andar por lugares que conhecia. Chega ao centro do bairro, uma pequena praça que abrigava comércios locais.
— Já cheguei até aqui? Até onde lembro, o caminho da escola é por ali. Será que tem alguma floricultura lá?
Ao procurar a rua da escola, percebe um pequeno comércio que nunca tinha visto, com o logo de uma flor: uma floricultura.
— Quando foi que abriram uma dessas aqui?
Daniel caminha até a floricultura. Ao entrar, se depara com uma loja cheia de flores, mas todas sem cores, tornando a busca pela lavanda um desafio.
— Merda, flores eram especialidade da Helena!
Após falar em voz alta, uma atendente percebe a presença do rapaz e vai até ele.
— Oi! Desculpa não ter te atendido antes, o senhor deseja algo?
— Ah, não precisa se desculpar, eu preciso sim, quero uma lavanda.
— Ok, pode vir comigo, ela fica no outro corredor!
— Tá bom!
Os dois vão até o outro corredor. A atendente logo mostra a lavanda; Daniel vai até ela e pega um pequeno arranjo.
— Algo mais, senhor?
— Acho que não.
— Tá bom, deixa que eu embrulho para você!
— Pode colocar em vaso?
— Posso sim! Vem aqui até o caixa.
— Ok, agradeço.
Rapidamente vão até o caixa. Enquanto a atendente colocava a lavanda no vaso, começa a conversar com Daniel:
— Lavanda é uma ótima escolha, senhor. É para uma pessoa especial
— Sim, é a favorita dela… — diz, cabisbaixo.
— Ela tem bom gosto então. A lavanda, na linguagem das flores, significa, acima de tudo, serenidade, calma, pureza e devoção. Dizem que quem gosta dessa flor normalmente ama muito o lar e as pessoas nele.
Daniel ficou em silêncio. A atendente percebeu o desconforto do rapaz, rapidamente se cala e termina de colocar a flor no vaso:
— Aqui, senhor, deu 15 reais.
— Obrigado, pode passar no crédito?
— Passo sim.
A atendente coloca o valor na máquina. Daniel aproxima o cartão e, para sua surpresa, estava sem saldo.
— Ah, acho que tenho saldo no outro cartão.
Enquanto procurava nos bolsos pelo outro cartão, a atendente pensa:
— Quer saber, vou fazer minha boa ação da semana!
Daniel continua procurando o cartão até que a atendente diz:
— Senhor, pode levar!
— Mas eu ainda não paguei! Eu devo ter saldo no outro cartão!
— Não se preocupe, senhor, pode levar!
— Ah, obrigado…
Daniel pega o vaso com a lavanda e vai até a saída da loja. Antes de sair, escuta:
— Volte sempre, senhor.
Daniel começa a andar até a escola, a cerca de 20 minutos do centro do bairro. Enquanto andava, relembrava momentos com amigos e com Helena. Tudo era nostálgico e doloroso. Perdido em memórias, continuava andando até finalmente chegar à escola. Logo de cara, era perceptível que o portão estava fechado. Entretanto, havia um segurança na entrada. Daniel vai até ele.
— Oi, desculpa atrapalhar seu serviço.
— Que foi? Eu não tenho dinheiro.
— Não quero dinheiro. Sou ex-aluno desta escola e gostaria de fazer uma visita.
— Cala a boca, seu sem-teto. Você quer um lugar para usar droga e dormir!
— Não é isso, senhor, vou explicar: minha falecida esposa me fez um último pedido!— Diz, procurando em qual bolso tinha deixado a carta.
O segurança, sem paciência, empurra o rapaz, que estava fraco por estar comendo mal. Cai no chão com tudo. A única coisa que Daniel consegue fazer é proteger o vaso com a lavanda.
— Cai fora daqui, seu moribundo!
— Merda, tá bem, eu volto em outro momento.
Daniel se levanta, verifica o vaso e a lavanda, ambos estavam bem. Decepcionado, começa a andar na direção oposta da escola, até que escuta uma voz:
— Daniel? É você?
Ao olhar para frente, percebe que a pessoa que havia reconhecido ele era um antigo professor.
— Professor Otávio? — Sou eu mesmo, Daniel! Rapaz, faz anos que não te vejo!
— Ah, fiquei ocupado esses tempos…
— Sei, mas me diga o que te levou a vir aqui!
— Queria fazer uma visita ao colégio, mas o segurança não deixou!
— Como não? Nosso primeiro membro do clube de arte, deixa eu resolver. Hoje você é meu convidado especial.
— Sério! Muito obrigado, professor!
— Sem problemas, apenas venha comigo!
Os dois andam até o portão de entrada. O professor passa pelo segurança, mas quando Daniel ia passar, o segurança coloca o braço na frente, impedindo sua passagem.
— Ainda não desistiu, mendigo?
O professor coloca a mão no braço do segurança e diz:
— Ele é meu convidado especial, trate-o com o devido respeito! — diz, com expressão séria.
— Desculpe, professor Otávio, pensei que ele era um vagabundo que queria dormir aqui.
— Ele não é esse tipo de pessoa. Vamos, Daniel.
— Ah, ok!
Os dois entram na escola. Sem saber para onde Daniel queria ir, o professor pergunta:
— Aonde você quer ir, Daniel? Tem vários lugares nessa escola que podem ser nostálgicos para você.
— Ah, queria ir até a sala de artes.
— Esse era seu lugar favorito na escola, não é?
— Acho que era. — Então vamos, eu te acompanho até lá.
O professor e Daniel começam a andar pelos corredores. Como Otávio disse, o rapaz tinha muitas memórias naquele local. Cada sala que passavam evocava uma memória feliz. Querendo evitar o sofrimento do ex-aluno, o professor começa a conversar:
— Mas me diz aí, Daniel, o que anda desenhando?
— Desenhando? Acho que faz um bom tempo que não toco em um pincel.
— Sério? Que desperdício de talento, rapaz. Você já deveria ser um artista reconhecido se tivesse continuado.
— Não precisa exagerar, professor. Eu nem era tão bom!
— Daniel, você sempre teve esse defeito: nunca conseguiu perceber o quanto talentoso era.
— Ah, mas mesmo com muito treino, não cheguei ao seu nível.
— Sério que acha isso? Lembra quando pintou na tela pela primeira vez?
— Acho que não…
— Deixa que eu te lembro então.
Há muitos anos, durante uma aula…
A turma estava em total caos. Aula de artes, uma das poucas aulas pouco valorizadas tanto pelos alunos quanto pelos professores das outras disciplinas. Professores como Otávio tinham que fazer um milagre por dia para conseguir dar a aula de forma apropriada. Naquele dia, ele tinha distribuído uma folha de papel para todos os alunos e deu como objetivo que desenhassem uma paisagem. Entretanto, aquela não seria a única tarefa: as folhas logo se transformaram em bolinhas e aviõezinhos de papel.
— Pessoal, por favor, realizem a tarefa!
— Vai valer nota? — pergunta um aluno, completamente focado em seu avião de papel.
— Nada vai valer nota, mas mesmo assim é bom fazermos porque precisamos expressar nossa criatividade.
— Se não vale nota, não vou fazer!
— Eu também não!
Logo, uma guerra de papel começa na sala. O professor tentava controlar, mas era impossível. Foram 40 minutos de puro caos. Para alívio de Otávio, o sinal do intervalo tocou e todos saíram correndo. Cansado e frustrado, ele apenas se senta em sua mesa, cabisbaixo e pensativo se estava no emprego correto. Até que uma pessoa se aproxima.
— Professor?
— O sinal do intervalo já tocou. O que você está fazendo aqui? — Questiona, apontando para fora da sala.
— É que… eu fiz a atividade e queria entregar.
— Você fez? Que bom! Pode deixar aqui na mesa, pode ir!
— Tá bom, obrigado, professor!
Rapidamente a pessoa sai da sala. Otávio, frustrado, pega o papel e, para sua surpresa, aquele aluno tinha feito um belo campo florido.
— Esse desenho é lindo! Mas como é possível? Foi aquele aluno que fez isso durante a aula?
O professor observa as carteiras e percebe que, em uma delas, o estojo estava aberto e vários lápis jogados. Provavelmente era a carteira do estudante.
— Ele fez isso em 40 minutos! Eu o tratei com desdém! Preciso ir falar com ele!
O professor se levanta e sai correndo, procurando o corredor que levava até o refeitório. Consegue ver um estudante indo lentamente até a área de refeição.
— Ei, você! — grita.
O estudante andava lentamente, ignorando o chamado, até que sente alguém tocar em seu ombro.
— Ei, rapaz, por favor, espere!
— Oi, pode falar, professor! — exclamou, surpreso.
— Você que fez esse desenho?
— Fui eu sim.
— Ainda bem que te encontrei! Você tem desejo de pintar em um quadro?
De volta ao presente…
— Realmente, acho que foi a partir daquele dia que comecei a pintar todos os dias. — diz, rindo de canto de boca.
— Sério, mas por que você parou de pintar?
— Amo desenhar e pintar, mas artista não é uma carreira muito valorizada.
— Você acha que eu não sei? Mas tudo bem, imagino que tenha feito isso pela Helena, né?
— Sim… — diz, cabisbaixo.
— Mas me diz, Daniel, você ainda lembra do primeiro quadro que pintou?
— Foi alguma paisagem, não é?
Anos atrás… Na sala que hoje seria conhecida como clube de artes, Daniel estava diante do quadro pela primeira vez, acompanhado pelo professor Otávio.
— Ainda bem que veio, Daniel!
— Agradeço o convite.
— Mas me diz aí, o que deseja desenhar?
— Não tenho a mínima ideia.
— Sem nada em mente, né? Que tal uma paisagem como da última vez?
— Uma paisagem? Posso fazer um campo de flores de novo.
— Ok, então desta vez foque em apenas uma flor!
— Pode ser, mas qual escolher?
— Boa pergunta…
A sala ficava no primeiro andar, com bela vista para um pátio aberto, onde alguns estudantes almoçavam. Enquanto Daniel observava, algo prende sua atenção: uma bela garota de cabelos ruivos almoçando, com um girassol no cabelo. Ela era o centro das atenções.
— Girassol... — Diz, olhando fixamente para a garota.
— Girassol? Boa escolha, mas de onde você tirou a flor?
O professor se vira para ver o que o rapaz observava. Ao perceber que estava fixado na garota, diz:
— Uhhh, Helena Dias, menina da sala B.
O garoto fica envergonhado…
— Ah… eu estava vendo o girassol!
— Não precisa mentir, rapaz. Helena é uma bela jovem. Muitos garotos ficam admirados com sua beleza.
— Realmente…
— Mas não tenho certeza se você tem uma chance real. Você não é feio, mas com certeza ela é muita areia para seu caminhão.
— Já deu dessa conversa! Vou pintar os girassóis!
De volta ao presente…
— Realmente, meu primeiro quadro foi por conta da Helena, né?
— Sim, você realmente a amava antes mesmo de conhecê-la!
— Pena que, no final, aquele quadro ficou horrível!
— Horrível? Rapaz, quem está velho sou eu. Você é muito jovem para perda de memória.
— Como assim? Lembro que ficou tão ruim que até joguei fora.
— Olha, que você jogou fora, eu me lembro, mas que ficou ruim você está enganado.
Ao terminar de falar, os dois finalmente chegam à sala. O professor abre a sala: tudo que havia nela era um quadro. Pintado, havia um belo campo de girassóis, preenchido por céu azul e um grande sol amarelo. No cavalete de pintura, uma quarta aguardava o rapaz.
— Isso é o meu quadro…— Diz, sem acreditar.
— Não, esse é meu maior tesouro.
— Aquilo é uma carta?
— Vá até lá, pegue um banco e deixe a lavanda do lado do quadro.
Daniel anda lentamente até o quadro, faz como o professor disse, deixando a lavanda ao lado. Ao pegar a carta novamente, estava escrito: remetente Helena. O professor se aproxima e diz:
— Daniel… o amor não conhece o fim. Nem a morte consegue apagá-lo. Helena sabia que você cairia em pedaços sem ela, e por isso deixou essas cartas. Não são simples palavras, são o cuidado dela estendido além do último suspiro. A morte pode ter levado o corpo, mas nunca levou o amor. Ela ainda está aqui, velando por você, se perguntando se você come, se pinta, se segue em frente. Cada carta é a prova de que ela se recusou a partir, deixando apenas vazio — é a maneira dela garantir que você não perca a esperança.
Daniel se debulha em lágrimas. O professor coloca a mão nos ombros do garoto. Mesmo chorando, algo tinha mudado. Com os olhos cheios de lágrimas, ele percebe que o quadro e a lavanda tinham cores.
Algumas semanas depois…
Daniel estava em sua casa, com a carta em cima da mesa. Ele ponderava se conseguiria ler mais uma mensagem deixada pela sua amada.
— Helena…
Daniel decide pensar mais antes de abrir a carta. Com fome, ele abre sua geladeira, percebendo que a comida já havia acabado.
— As coisas que a Isa deixou já acabaram? É… já faz alguns dias que ela veio aqui. Tenho que agradecê-la… Em algum momento, acho que vou ter que sair de casa, comprar alguma coisa talvez.
Daniel se levanta da mesa e pega suas chaves, pronto para sair de casa. Ele abre a porta, mas sente um incômodo. Volta, vai até o banheiro, ainda sem conseguir ver seu próprio rosto; molha as mãos e as passa no rosto. Voltando para a cozinha, olha para a carta, pensando se deveria levá-la com ele ou não.
— Eu devo?
Olhando e ponderando, em um ato impulsivo, ele pega a carta e coloca no bolso. Novamente sai de casa. O mundo continuava sem cores, mas a esse ponto ele já estava acostumado. O rapaz começa a andar até o mercado que havia no centro do bairro onde morava. Rapidamente, Daniel chega à praça central.
— Era aqui que ficava aquela floricultura, né?
Rapidamente Daniel encontra a floricultura. Como a noite já havia caído, o estabelecimento estava fechado, mas o jovem percebe que havia uma lavanda na vitrine. O roxo da lavanda, naquele momento, era a única cor no mundo do rapaz. Da loja, uma pessoa sai — possivelmente um funcionário encerrando o expediente — e, sem querer, seus olhares se encontram. Assim Daniel percebe que era a mesma atendente que o ajudara anteriormente.
“Aquele cara da última vez!”, pensou a atendente.
Ela repara que ele não parecia muito diferente da última vez em que se encontraram. Observando bem, percebe a carta em seu bolso.
— Então é ele…
A atendente termina rapidamente de fechar a loja e vai na direção do rapaz. Sem entender o motivo, Daniel apenas fica parado.
— Oi! — diz a atendente, com um sorriso meigo no rosto.
— Oi? — responde o rapaz, confuso.
— Você é o rapaz que comprou a lavanda da última vez, né?
— Acho que sou eu mesmo.
— Veio para pagar??
— Verdade, eu não paguei pela lavanda! — diz, remexendo os bolsos à procura do cartão.
— Era só brincadeira, moço, não se preocupe. Mas diz aí, veio comprar outra flor?
— Não, acho que estou procurando um mercado.
— Um mercado? Tem um aqui perto, mas não fica perto dos Correios.
— Dos Correios? Por que eu iria aos Correios?
— Você está com uma carta no bolso, então pensei que quisesse enviar para alguém.
Daniel olha para o bolso, lembrando que realmente havia trazido a carta.
— Essa carta não é para enviar… foi uma carta que me enviaram.
— Que legal! Com as redes sociais, mandar mensagens por carta é algo raro. Imagino que a pessoa que te enviou isso goste muito de você.
— Sim… gosta.
A atendente pega o celular, percebendo que já estava ficando tarde. Guarda o aparelho e diz:
— Já está ficando tarde, então vou indo. Não sei por que você ainda não abriu a carta, mas quem te mandou deve querer que você leia! Então até mais!
A garota sai correndo. Daniel olha para a carta, pensando que talvez realmente devesse lê-la. Um pouco afastada, a atendente se vira e diz:
— Rapaz! Acho que essa hora o mercado já está fechado!
— Já está tão tarde assim?
Daniel se senta em um banco, pega a carta do bolso e pensa consigo:
— Por que a Helena fez isso?
Ele começa a lembrar das palavras de seu antigo professor, semanas atrás.
“Cada carta é a prova de que ela se recusou a partir, deixando apenas vazio — é a maneira dela garantir que você não perca a esperança.”
— Cada carta… A Helena fez várias cartas?
Olhando para a carta, em um surto de coragem, Daniel a abre.
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Daniel.
Talvez eu nunca consiga explicar por que certas cores nos abandonam.
A gente pinta de azul até o azul cansar, e então tudo parece cinza.
Mas eu aprendi que a cor não morre — ela só se esconde, esperando o momento certo para voltar a ser viva.
Se um dia você sentir falta das cores que deixou pra trás, volte onde elas começaram.
Nem toda tinta seca para sempre.
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— O quê? Como assim? Voltar para onde elas começaram?
A barriga de Daniel ronca. Com fome, sua mente não conseguia raciocinar bem.
— Preciso arranjar algo para comer! Não tenho dinheiro para um restaurante… e a única pessoa que mora aqui perto é… Não é possível que vou ter que ir lá! Eu me recusei.
Daniel lê novamente: “Se um dia você sentir falta das cores que deixou pra trás, volte onde elas começaram.”
— Para onde tudo começou…
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Há muitos anos atrás…
O pequeno Daniel estava sentado no sofá vendo desenho na televisão quando alguém passa por ele.
— Mamãe!
— Eu passei na frente, Dani? Desculpa, não percebi.
— Tá desculpado! Mamãe, mamãe, mamãe!
— Pode falar, filho, estou escutando.
— Quando que o papai vai chegar?
— Acho que logo ele chega. Mas por que quer saber?
— Ele falou que ia me trazer um presente!
— Um presente? Que legal!
Alguns minutos depois…
A porta se abre. Daniel corre para receber o pai.
— Pai, pai, pai!
— Meu pequeno, finalmente cheguei!
— Como foi seu dia?
— Foi bem, mas é raro você vir me receber.
— Ah, eu estava ansioso pela sua chegada.
— Só por causa do presente, né? — ri o pai.
— Fui pego!
— Toma, acho que você vai gostar!
O pai tira um embrulho da bolsa. Em segundos, o papel é rasgado. Era um caderno de desenho.
— Um caderno? — diz Daniel, confuso.
— Abre ele!
O garoto abre. Folhas em branco.
— Desenha. Use sua criatividade. Depois me mostra, tá?
— Tá bom… — diz, meio magoado.
Ele pega lápis de cor e começa a desenhar. A mãe e o pai conversam:
— Querido, eu sei que estamos em situação difícil, mas… um caderno?
— Foi o que consegui comprar.
— É… tá bom.
Algum tempo depois…
— Daniel, está na hora de tomar banho.
— Como está na hora? Acabei de começar a desenhar!
— Olhe as horas. Já faz um bom tempo.
— Sério?
Daniel vê o relógio e percebe que passou horas desenhando. Ele corre para o quarto. O pai comenta:
— Pelo jeito ele gostou do caderno.
— Ainda bem. Nosso menino é um anjinho!
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De volta ao presente…
— Olha, você não precisa se preocupar comigo! — diz Daniel, irritado.
— Mas eu sou seu pai, eu preciso me preocupar com…
— Depois de tantos anos você decidiu se preocupar?! — grita Daniel, interrompendo. — Eu já disse que estou bem!
O silêncio domina por minutos. O clima é pesado. Ainda assim, seu pai tenta falar:
— Filho… depois que sua mãe partiu, eu parei de fazer o que um pai deve fazer, mas…
— Mas o quê? Você acha que foi fácil pra mim depois que a mamãe morreu? Eu tinha que trabalhar pra comer algo decente porque você só sabia beber! Eu sofria bullying na escola, apanhava todo santo dia, e você nunca fez nada! Então não trate como se existisse justificativa!
O pai suspira, olha para o teto. Quando volta o olhar:
— Sinceramente… você está certo. Não existe justificativa. Sua raiva tem motivo. Faz quase dez anos que não estou presente na sua vida. A única coisa que posso fazer é te pedir… desculpa.
— Desculpa? Já é tarde.
— Eu sei. Mas mesmo assim… preciso dizer. Depois que perdi sua mãe, meu mundo desmoronou. Eu não sabia o que fazer. Sinceramente… eu nem queria viver. Na época, eu não pensei em como a morte dela te afetou. Acho que eu não conseguia pensar em nada… só queria o amor da minha vida de volta.
Daniel percebe lágrimas caindo dos olhos do pai — algo que nem no enterro de sua mãe aconteceu.
— Mas mesmo assim… não é desculpa por ter falhado com você. Eu não posso mudar o passado. Mas já perdi minha esposa… não posso perder meu filho.
— Eu… eu não posso te desculpar! Eu não consigo! Tudo que eu queria, quando a mamãe morreu, era um abraço do meu pai! — diz Daniel, chorando.
— Não quero que esqueça o que fiz — ou o que deixei de fazer. Só peço uma chance de voltar a estar na sua vida. É tudo o que quero. Me deixe ser o pai que deveria ter sido.
— Já é tarde pra isso. Eu não sou mais aquele menino que precisava de um abraço porque a mãe morreu.
— Realmente… você não é mais aquele garoto. Mas ainda precisa de um abraço. Sei pelo que está passando.
— Sabe pelo que eu estou passando? — pergunta Daniel, chorando de dor e raiva.
— Sei. Sei como é perder o amor da sua vida sem poder fazer nada. Então, por favor… deixa eu te dar um abraço. Deixa eu ser o pai que não fui.
— Pai…
Daniel faz um pequeno gesto com os braços. O pai entende e o abraça com toda força que ainda tinha.
— Dói tanto, pai… dói tanto! Eu só queria ver ela pela última vez…
— Eu sei, meu filho… Eu sei. Não posso tirar toda essa dor, mas prometo que desta vez vou estar ao seu lado, para o que der e vier.
Daniel desaba em lágrimas. Um abraço aguardado por anos finalmente acontecia.
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Algum tempo depois…
Após se acalmarem e terminarem o jantar, a noite já havia caído. O pai faz uma proposta:
— Não quer dormir aqui esta noite?
— Dormir aqui?
— Sim. Seu quarto está meio bagunçado, mas nada que você não consiga ignorar.
— Já está bem tarde… Acho que tudo bem.
— Vai indo lá. Vou pegar umas cobertas.
— Tá bom.
Daniel se levanta e começa a andar até seu quarto. Antes de sair, ele se vira:
— Obrigado, pai.
— De nada, filho.
Caminhando pela casa, Daniel percebe que nada havia mudado. As decorações eram as mesmas, mas havia pregos espalhados pelas paredes. Sem entender, decide perguntar depois. Ao chegar na porta do quarto, a placa “Quarto do Dani” ainda estava lá.
— Meu quarto… Faz anos que não entro aqui.
Daniel abre a porta. A cama estava do mesmo jeito. Mas havia algo estranho: vários quadros encostados nas paredes e nos móveis. Observando atentamente, percebe que todas essas pinturas eram dele.
— Esses são os trabalhos que fiz no ensino médio? Como eles estão aqui? E essas molduras?
Cada quadro tinha uma moldura diferente, como se feita especialmente para aquela obra. Confuso, ele continua observando. A voz do pai surge:
— Gostou da decoração do meu quarto?
— Pai? Como conseguiu esses quadros? Achei que tinham ficado no armazém da escola.
— Bom, filho… faz tempo que eu queria me reconciliar com você. Só que não estava pronto. Mas queria poder te ajudar de alguma forma. Então pedi para a Helena e para seu professor me darem algumas pinturas suas.
— Helena…? Como assim me ajudar?
— Acho que reparou que cada pintura tem uma moldura única.
— Sim… espera… foi você que fez? — pergunta, perplexo.
— Sim. Desculpa ter feito sem te perguntar, mas queria poder te apoiar de algum jeito.
— Não precisa pedir desculpa… ficou tudo muito bonito.
— Minha favorita é uma que está ao lado da sua cama. Dá uma olhada.
— Tá bom.
Daniel vai até a cama e se agacha. Ele lembra daquela obra: sua casa, uma pintura feita antes de ir morar com Helena. A moldura era linda, com corações que se ligavam infinitamente. Olhando de perto, percebe algo a mais: entre o quadro e a moldura, havia uma carta.
— Pai… isso é dela?
— Sua esposa te amava de uma forma assustadora.
Os olhos de Daniel brilham. Ao olhar para o quadro, as cores vibram. O garoto não entendia o que estava acontecendo. Seu pai deixa o quarto. Daniel pega a carta e percebe tinta seca derramada no envelope. Sem entender, murmura:
— Helena… aonde você quer me levar?